terça-feira, 30 de novembro de 2010

É o que é.

Na soleira da minha casa caiu um pingo.

Um pingo de chuva que passou.

Que foi tudo aquilo que passou,

E agora é pingo.

Só pingo.

Tudo ali naquela gotinha...

O temporal é tal qual choro,

Choro de uma só lágrima,

Que vem do alto,

Que cai do olho,

Que desce em mim,

Que escorre por entre os dedos,

E molha.

Por cada curva que passa espalha,

Um pouco de si, migalhas...

Moléculas e histórias de nuvens cheias,

De dias e noites...

Que deitam no espaço vasto que as rodeiam,

E em contato com a aura doce do lar que não retornam,

Soltam, rolam, acontecem...

Na beira do caos que se dispersa,

O que era mar agora é rio,

O que era rio agora é poça,

O que era mil, pouca,

Da chuva a gota,

Que cai na minha soleira,

E espalha...

E que já não é mais

Nem chuva,

Nem pingo,

Nem nada.



terça-feira, 23 de novembro de 2010

Ele

                                          “ … A spoonful of sugar helps the medicine
                                           Goes down…the medicine goes down…
                                           In the most delightful way.”


Ele almoçava sentado numa cadeira simples daquele restaurante vegetariano. Não estava só. Havia do seu lado qualquer companhia. Na mesa, um prato colorido preenchido com legumes e esperanças de um bom funcionamento biológico. Ao lado, um livro. Ele lia “Perto do coração selvagem”, de Clarice Lispector. Aparentava seus vinte e tantos anos, quem sabe já não completara trinta. Tinham seus olhares os mesmos dizeres da obra que devorava. Fome? Reflexão? Ambos. Por debaixo daqueles cabelos precocemente polvilhados de branco, sinalizando pouca intimidade com pentes e tesouras; debaixo daquela atmosfera sensorial vestindo calça de tecido leve, que esvoaçava a cada movimento, ziguezagueando por entre as pernas, Calçando tênis com cadarços gastos, aquele jovem desconhecido ocupava-se das suas necessidades, num dia que ordinariamente acontecia. Sempre na mesa ao lado. Por vezes gesticulava, porém sua refeição corria pontuada por grandes silêncios... Interrompidos por um movimentar de lábios contínuo, quase repetitivo, de um falar calmo, reto. Coeso. Argumentava sobre a literatura? Sobre as vantagens de uma alimentação saudável? Gabava-se? Ensinava? Discutia? Há quem discuta assim, tão indiferentemente?

Seus dedos envolviam um pequenino copo que era levado à boca e retornava à mesa. Parecia bebida quente, já que um sopro bem certeiro expulsava uma fumacinha petulante, capaz de enganar uma língua desatenta, precipitada... Selvagem. No ambiente, um líquido bem menos escaldante escorria rumo aos ouvidos, descendo por riachos, acarinhando mansamente os sentidos... Dentro daquela caixa de som cabia boa parte da natureza. Dentro dele, não sei... Estava morno feito o dia lá fora, que aquecia timidamente a face de quem atravessava a rua? Era mais um dia como outro qualquer? Bem provável. Talvez sua bebida necessitasse de mais açúcar, seu cafezinho mais pó, sua refeição mais tempero. Talvez estivesse vivendo o que se esperava, dizendo o essencial, comendo o trivial. Mas ele? Ele que queria dizer tanto... Ele tão informativo: cabeça, tronco e membros. E ao lado, seu livro. Não o abriu uma vez sequer. Permanecia intacto. Havia, talvez, uma página marcada com um pequeno filete de papel. Sim. Já conhecia o sabor da maçã. Era agora abocanhá-la por completo e negar o paraíso. Justamente o paraíso que habitava. O paraíso daquele dia, daquele almoço, daquela conversa, do tic-tac dos ponteiros do relógio, da hora que lhe dizia: Quer dançar comigo?

Embora precisasse repetir a mesma dança cansativa diariamente, preferia o tango, às vezes. Tango pra variar... Para esquecer os inevitáveis passos programados do paraíso. Talvez tenha pensado isso naquele exato instante. Ouvido Carlos Gardel cantando de soslaio, num cantinho daquele restaurante, apropriando-se dos corações, por compaixão, por puro prazer. Por una cabeza. Um sorriso abriu-se, rasgando aquela sobriedade contundente, dando-lhe a face uma concavidade. Gentil cavidade! Ligara-lhe os dois lados do rosto. Um talho em qualquer indisponibilidade que pudesse remeter. Uma brecha para o esquecimento de um problema corriqueiro: fazer compras, alimentar o cão... Atalho. Perdia-se naquele sorriso como quem se perde de uma formalidade convencional. Do dia a dia que nos afasta de nós mesmos... Torna-nos domesticados e nos oferece pílulas anti-qualquer coisa... anti-eu, anti-você, anti-ele.


Ele estava agora bem perto. Pertíssimo do seu coração selvagem. Por um minuto, que fosse, naquele dia todo.

domingo, 14 de novembro de 2010

Cá comigo

Cá estamos: eu comigo
Estou em casa.
Sou meu lar, aldeia, amigos, convidados...
Tenho feriados, dias santos, dias livres.
Dias de sol e roupas de banho a beira mar, sem eira nem beira.
Noites também. Noites de farra, noites fartas e claras de alguma lua
Uma cidade inteira com mil faces, feito diamante lapidado.
Sou meu próprio lapidador e diamante...
Florista, engenheiro e ambulante...

Cá, comigo, estou eu.
Meu parceiro querido,
Doce afago nestas horas só nossas...
Nossa e de mais ninguém!
Sorte de dois, que momento não há
Para separar-me de mim.
Não quero outra companhia além de tu.
Quero-te aqui:
Deitar-me contigo,
Dormir bem juntos,
Acordar contigo,
Viver contigo,
Casar-me...

Cá estou eu,
Sou eu mesmo sozinho.
Caladinho...
Ocupando quarto e sala deste apartamento,
Não fossem os cheiros, algumas canções e poemas e retratos,
Quase vazio e desabitado, pesando leve
Levando a espera.
Quem sabe não vejo por debaixo da porta, qualquer hora,
Pisando no meu capacho, dois pés calçados?
Gente estrangeira, gente de fora
Querendo, agora, um gole d’água, uma estória e um suspiro...
Querendo ocupar-se em meu abrigo

Comigo.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

As cores do Jequitibá Rosa

"...do verde mais verde, ao anil mais anil,
cores do sol e da chuva, do sol e do vento,
do sol e luar. Era eu nua na rua, usando e
abusando do verbo provar."

Gonzaguinha cantado por Maria bethânia.

Era azul aquele dia de final de inverno. Em toda sua vastidão não se maculava um traço branco de nuvem sequer. Nenhuma forma desenhava ingênua sobre aquela grande tela. Os raios de sol, ofuscantes, fugiam apressados do espaço, refratavam-se assanhadamente na atmosfera e soltavam-se douradinhos sobre o castanho cacho do cabelo daquele rapaz que atravessava a rua. Os carros enfileiravam-se numa grande avenida. A maior da cidade em extensão. O trânsito por ali era intenso, já que ela ligava importantes pontos. Uma espécie de artéria urbana vital, de grosso calibre, alimentando seus principais órgãos: prédios comerciais, centro cultural, acesso a grandes bairros... atravessá-la num dia comum não se tornava tarefa fácil, nem segura, tampouco agradável. Era uma quarta-feira típica. Caos, pressa e intolerância desgovernavam as vias públicas, enquanto os sentimentos humanos, acomodados no asfalto, também eram mal conduzidos. Sinal vermelho. Os pedestres movimentavam-se com passos largos, o caminho era longo e tempo contado, era alcançar o outro lado da rua e seguir a vida.


Como fazia todos os dias pela manhã, o jovem rapaz, carregado de uma bagagem volumosa, deslocava-se junto à multidão, também apressado, também cronometrando seu tempo, também medindo seus passos. Corria para sua vida na outra margem, perdido entre mochila, bolsas, tela e tintas. Sumia sob toda a vontade de pintar e o que o ofício exigia. Impossível não pensar que um belo dia acontecia. Tinha uma luz tão convidativa que invadia qualquer coisa e refletia, dentro dos olhos, a riqueza de detalhes de cada cor. Matizes. Azul-anil, azul-celeste, turquesa, verde-oliva, amarelo-manga, rosa. Inevitável. No caminho, o jovem pintor buscava uma inspiração para expressar tanta variedade descortinada pelos feixes luminosos. Os mesmos que revelavam o castanho-claro e escuro e nem-claro-nem-escuro do seu cabelo.


Perto dali, cerca de duas quadras à frente e à direita, chegava-se a um lugarejo aprazível e muito charmoso. Uma baixa muralha de limoeiros simpáticos e aromáticos delimitava um espaço bem preservado, de grama rasteira, rente ao solo, de vivo verde, que parecia ser aparada cuidadosamente com uma pequena tesoura. Era um terreno compacto e geometricamente circular, perdido ou cravado em meio à construção civil de uma cidade contemporânea: concerto, fumaça e luzes artificiais.Era só o que havia por ali, os limoeiros, a grama e, no centro, uma imponente árvore de robusto e calibroso tronco. Uma espécie tão forte e soberana, que alguém, por encantamento ou respeito ou miudeza diante dela, resolveu poupá-la. E a cidade formou-se por toda parte, menos nela.


Por acaso ou não, conforme a crença de cada um, uma brisa leve e refrescante soprou aos ouvidos do pintor no momento em que ele passava pela entrada dos limoeiros. Caiu-lhe da mão um pincel com a ponta mal lavada de tinta rosa, ainda molhada e brilhante, capaz de rosear qualquer superfície. O cítrico aroma dos limões tomou-lhe o olfato e paladar, guiando-o para dentro do lugar, que mais lembrava um jardim.Era perfeito!- pensou. A luz parecia fragmentar-se em todas as cores de sua aquarela. Além disso, a visão daquela elegante árvore deu-lhe, antecipadamente, o esboço da pintura que procurava, e mais, trouxe uma nostalgia da sua infância. Recordou-se de quando tinha seus cinco, seis anos de idade e passava férias na fazenda dos avós. Todas as tardes ele e o avô ficavam sentados na varanda da casa, em cadeiras de balanço acolchoadas de branco veludo, que acarinhavam os dedos e toda a pele com sua maciez, onde conversavam longamente. O avô contava-lhe casos, mostrava-lhe a natureza de uma forma bem diferente. Contava o que cada passarinho, árvore, grilo ou esquilo falava e pensava. Sempre no deitar do sol, o avô fixava firmemente o olhar no horizonte e dizia-lhe sem errar uma só letra:


- Ali está, meu filho, o grande contador de histórias. O Jequitibá Rosa. Foi ele quem me contou tudo isso...


Era sempre assim que o avô anunciava mais um fim das aventuras, juntamente com o encerrar do dia, que parecia uma pintura tenra e deslumbrante. O pôr-do-sol acontecia por detrás do sábio jequitibá, e ele, sozinho no horizonte, ficava todo tomado de um brilho, como se acendesse, como se fosse ele o próprio sol. Avô e neto entreolhavam-se maravilhados, estupefatos, parecendo sempre ser a primeira vez que contemplavam o entardecer. E o avô com um sorrisinho afável no canto dos lábios, proclamava convicto, a cada dia:

- Igual a este não haverá outro, escute o que te digo. Hoje temos a melhor imagem do meu amigo jequitibá. Nem ontem, nem amanhã, nem depois de amanhã... Hoje.


Todos os dias o neto escutava aquelas palavras e ficava quietinho, pensando que aquele era sempre um dia único, especial, inigualável, porque assim lhe dissera o avô. E com certeza, fora o jequitibá que, por sua vez, havia dito ao velho... E era nessa hora que, alegremente, surgia a avó com uma jarra de limonada fresquinha e cheirosa, perfumando a paisagem e a memória do garoto, que cresceu com uma imagem tão intimamente aprofundada nos olhos, que se pode até crer estar enraizada em sua alma.


Diante daquela visão tão nova e ao mesmo tempo tão familiar para ele, o garoto, que agora se fizera homem e pintor, deslumbrava-se com o reencontro. Depois de muitos anos, revia belo e altivo, como na sua infância, o querido Jequitibá Rosa, plantado bem ali na sua frente. Sem pestanejar, foi logo tratando de montar sua alva tela no cavalete de madeira, último presente de seu avô. Dispôs as cores em aquarela, todas elas. Retirou de dentro da bagagem pinceis de variados tamanhos e formas e os espalhou por perto, ao lado das tintas. Olhou para o céu, para um lado, o outro, fitou a árvore e sorriu. Sorriu francamente como se já a conhecesse e soubesse que ela sorriria de volta. Como o fotógrafo que diz à modelo: você está linda! Como o aluno que diz ao professor: obrigado. Como o artista que diz à obra: - “Parla!”. Assim, empunhou o pincel eleito e o passou na tinta branca. Sem tirar os olhos da paisagem, marcou três vezes seu polegar esquerdo, logo abaixo da unha. Um hábito, costume, antes de começar a pintar. Gostava de sentir a tinta na pele, e que ela também o sentisse.

Pouco a pouco ia surgindo, no espaço branco, traços e formas. O caule longo, rijo, centenário, de raízes profundas, exteriorizando boa parte da memória do planeta, aparecia tímido, erguendo-se disforme. Ele começava sua obra assim, sempre pela base, pelo que sustenta e nutre. À medida que o tempo corria, as cores alongavam-se, tangenciavam-se, mesclavam-se, ainda em tons de marrom, e a árvore de estatura admirável já era tronco no final do dia. O relógio marcava seis e meia da tarde. O jovem artista, percebendo o avermelhar da paisagem, encheu-se de apetite e foi buscar uma fruta que trazia na mochila. Sentou-se no pé do jequitibá saboreando uma maçã. Pensava em como adequar as cores, os contornos, enfim, compor sua pintura. Gostaria que todas as pessoas vissem no seu trabalho, o que ele, desde menino, aprendera a enxergar: a beleza única de uma imagem, mesmo que ela se repita, incansavelmente, em todos os dias do ano. A beleza está na capacidade de se procurar o inédito no cotidiano, de se tornarem múltiplas as possibilidades, de ampliar os sentidos, os sentimentos... Sentiu esses dizeres como sussurrados no seu ouvido.

Correu o olho por toda a extensão da árvore, até a última folha que alcançou sua visão. Lembrou do avô, que ouvia o jequitibá. Por um minuto pensou tê-lo escutado também. Era assim? Seus pensamentos e reflexões, tão fortes ali, eram nada mais do que o doce e gentil falar da sábia árvore? E se fosse, seria a hora de deixa-la continuar?

Outra mordida na maçã e caiu-lhe nos ombros, delicadamente, uma folha que planava livre, desconectada do conjunto que pertencia, solta para acontecer como bem o quisesse. Depois veio um fruto, uma coisa que parecia uma hélice. Vinha rodopiando até bater-lhe no outro ombro, querendo semear. Também querendo ser. Mesmo sós, a folha e o fruto não esmoreciam diante do que pretendiam cumprir. Um sopro mais forte, então, passou por lá, varrendo os ares e fazendo ranger a madeira delgada dos galhos superiores, derrubando algumas poucas folhas. Pensou nas poucas folhas... No pouco tempo que elas têm para serem folhas daquele pé, do pouco espaço que elas têm para existirem como natureza, no pouco tempo que as pessoas têm para vê-las, no pouco que estas pessoas preocupam-se em vê-las elas próprias, por ignorância ou medo ou displicência... No pouco tempo que todo o mundo não tem. No pouco. Naquilo que é miúdo e menor, contrário de fecundante, autêntico e vivificador. As poucas folhas são “muitas” enquanto folhas que se esforçam para ser o melhor que podem, com graça e elegância. As pessoas... As pessoas andam “poucas”!

Atônito, levantou-se. Da maçã, só restava o cabo. Quietou-se alguns minutos, observando o jequitibá. O misterioso jequitibá. Seu... Seu... Seu amigo jequitibá. Sorriu. Tinha cores na cabeça. Agora via claro todas as nuances de azul, marrom, amarelo, verde, verdade. Pintar tornara-se mais do que preencher a tela, mas penetrá-la com memórias, histórias, sentimentos, provocações, ponderações, com toda sua humanidade. Sim. Com todas as cores. Estava aprendendo a usá-las, distribui-las.

Voltou à tela. Agora já se viam galhos, rabiscos de limoeiros verdejando as bordas. Podia-se até, com boa vontade, enxergar um casal passando lá no fundo, ainda tracejado. O sol já se deitava atrás do jequitibá e, embora o quadro ainda não estivesse pronto, talvez nem próximo de, ele juntou seu material. Guardou tintas, pinceis e desmontou o cavalete tão cuidadosamente, que, estivesse quem fosse por perto, poderia notar uma pequena gravação na sua madeira. Nas costas, onde se lia: “e é para não duvidares da beleza que habitas em ti”. Vestiu-se novamente de mochila e bolsas. Amanhã estaria de volta e depois e depois... Até que finalizasse. Quanto tempo levaria? Não sabia. Nem queria sabê-lo, imagino. Queria antes, misturar as cores, todas elas, olhar para os lados, norte, sul... Pintar. Queria.

Passou próximo aos limões e não deixou de senti-los. Chegou à rua, cruzou a avenida, juntou-se a toda a gente e perdeu-se na multidão multicor. Partiu satisfeito, carregado de amores, pudores, tristezas, vermelhos, verdes, azuis... Foi-se.

    (Ao som de WHITE HAT, de Thiago Pethit)