domingo, 24 de abril de 2011

As flores

Entre um café e outro eu escutava a sua estória. Ela narrava os acontecimentos como um adendo. Algo já previsto para ser dito, porém, um motivo outro, de natureza inconsciente qualquer, fez com que o assunto surgisse num inspirar: “Ah, tenho que te contar...”.Ele nasceu assim, meio por acaso, solto, embolado. Quase prematuro ou já temporão. Não importa. A partir de então era o mote, incrivelmente tornou-se a coluna vertebral de uma conversa informal naquele final de tarde cheirando à cafeína. Sua bebida, ironicamente chamava-se amor-perfeito (café, leite e chocolate).

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Ficara horas aflita dentro do pequeno espaço em que trabalhava. Era uma sala com muitos equipamentos, muita informação, necessidade de delicadeza e calma. O sentimento tinha que ser contido. Mantido bem encarcerado dentro de si. Gritar e sacudir quisesse, teria que fazê-lo no restrito sítio que lhe cabia: dentro dela. E nesse espaço cênico, seus anseios atuavam primorosamente. Nenhuma farpa de comedimento tentava dissimular sua verdade. Bravo! Ali, céu e terra conectavam-se eletricamente. Raios. Desconectou o telefone da sua base e discou oito números que olhara no catálogo. Esperou que a voz da atendente anunciasse o nome do estabelecimento para que, então, pudesse gastar em palavras e ações sua fúria teatral. Era uma encomenda:

- flores do campo. Um buquê de flores do campo. - Disse à senhorita da floricultura. Não sabia o porquê da escolha. Não era sua flor predileta. Talvez a menos comprometedora... Sem muitas especificações, definiu seu pedido sucintamente, com palavras-chave: flor do campo- buquê- colorido. Sim. Na dúvida, todas as cores. Na dúvida, qualquer coisa. Na dúvida, tudo. Continuou sua vida apesar de tudo que planejava, apesar da sementinha que germinava no seu jardim mais interno e que despontara seus primeiros prolongamentos para fora da terra. Externos. Alguém anunciou a chegada lá fora. Era uma entrega. Flores! Recebia flores... Um buquê.

De um lado da linha alguém respondia ao soar do telefone. Ele. Do outro, ela derramava surpresa na voz... Agradecia o gesto carinhoso e sensível. Agradecia pelas flores do campo que acabava de receber. Como? Não fora Ele quem as mandou! A conversa pouco durou.

Seu coração batia já não mais num pulsar habitual. Torcia-se e destorcia-se, assim bombeava. Assim permanecia viva. Tonta dos minutos que se antecederam, embriagada de atitude e frenesi emocional sorriu consternada, radiante, assustada, ensimesmada. Tantos sentimentos destoantes no mesmo gesto. É bem o que lhe causara sua iniciativa apaixonada, e o que nos causam todas as iniciativas semelhantes. Estava sentada numa cadeira, ladeada por um arranjo de flores do campo multicores, que ela mesma havia enviado. Nem eram belas, nem delicadas. Ao contrário, entremeadas de ramos confusos que se avolumavam demasiadamente em todos sentidos: olfato, visão, tato... Lembrava-lhe um ornamento funeral. Saldo do dia: 36 reais pelas flores menos flores que já vira. Para o velório do coração enciumado do seu amado.

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Em nossa xícara, o café findava. Restava no fundo uma borra enegrecida que acompanhava o desfecho do conto. Diz-se que, nos paises árabes, o hábito de ler as borras do café de uma pessoa é um excelente oráculo. E conta-se mais, que as flores são símbolos de alegria, novidades no amor... Quem sabe, também não se viam flores no aprofundar daquela xícara de amor-perfeito? E se existem amores perfeitos, por que não crer que são aromaticamente temperados com imperfeições? Pequenas inseguranças, provocações, mistérios... Todas iguarias acrescidas às melhores receitas dos melhores chefes: segredos. Todas, intrinsecamente, desenhando o fundo das nossas xícaras. Dos nossos amores-mais-que perfeitos. Afinal de contas, quem nunca condimentou seus melhores amores com pequenas loucuras? 

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Uns traços

Um traço desenhou-me um mundo,
Curvou-se num mapa,
Bordou arestas e franjas e signos...

O traço enrolou-se em si
E fez de vez uma mola,
Um cacho bem acabado, redondo e só.

Um passo por cima, um passo por baixo,
Fechou-se em nó, o traço.
E seguiu desgastado, o que sobrou de ser
Um traço...

Deitou-se miúdo e concluso,
E sabendo-se livre, contudo
Encolheu-se num
Ponto.

Outro traço desenhou-me um mundo,
Curvou-se num lago,
Tracejou estrelas angulares no infinito...