No som, Caetano entoava uma canção. Dentro do carro já era
preciso dar a partida, enfim o semáforo sinalizara. Era agora verde. Vinha
rompendo o rubro que há pouco predominava. Juntamente a ansiedade, a tensão...
O meu rubro: seguia pensando numa carta. Essa carta nunca existiu. Não da
maneira convencional como geralmente as cartas existem. Tampouco fora escrita
por mãos... Estava a ser redigida por uma grande corporação, uma rede
intrincada de formadores de opiniões e suas idéias e suas memórias... Sinapses.
Isso aí. Esse perspicaz leva-e-traz biológico: o meu pensamento. O
editor-chefe? ELE, o sujeitinho. O meu desejo. Naqueles poucos minutinhos que me
encontrava parado no trânsito ocorreu-me, de súbito, uma cachoeira de tópicos
para compor uma carta que jamais escreveria (é bom que fique bem claro!),
endereçada a Alguém. Sabe aquele turbilhão de vontades que nos tomam as rédeas
diariamente? Aquilo que está sempre engasgado, atravessado na garganta, mas que
nem sempre a melhor maneira de resolver a coisa toda é atirá-la a Alguém, ou ao
papel, que seja? Exatamente. Eram desaforos, palavras mal ditosas... Eram...
Era... Era. Talvez fosse uma dessas insanidades que me importunam, vez ou
outra. Tenho insanidades recorrentes. Bom, Não sou nenhum louco. Só insanidades.
Quem não as tem?
A canção era la Barca , originalmente de Roberto Cantoral, um
compositor mexicano, muito premiado, cujas letras já foram interpretadas por
nomes como Maysa, Simone e... Luiz Miguel (É... talvez eu pudesse omitir este
último. Insanidades...). Enfim, Caetano Veloso também fez a sua versão. Ah,
esse Caetano... Ia cantando assim, impunemente, enquanto sua voz entrava em
sintonia com meus devaneios a caminho do trabalho. Todos os meus argumentos
brotavam incansavelmente. Construíam um texto impecável, persuasivo, de quem
tem toda a razão. Não qualquer razão, mas A razão, capaz de ser tão forte e
embasada e justificada. Ensimesmada. Sim. Bastava apegar-me aos fatos. Não
poderia ser de outra maneira. Os fatos...
...Hoy mi playa se viste de
amargura,
Porque tu barca tiene
que partir,
A buscar otros mares de
locura.
Cuida que no naufrague em
tu vivir...
Fato é que, de volta ao trajeto, com meu carro em movimento,
ultrapassando a haste dura e coroada de rubro daquele semáforo, também eu venci
os meus “rubros”... Abrandou-se em mim qualquer coisa. É. Sinal verde lá. Verde
cá. Parece-me que a vida tem dessas bobeiras conosco, nos povoa de insanidades
momentâneas para depois acharmos graça. Graça de como ela acontece... De como
as coisas passam, ou como vivemos apesar de. Graça daquele minuto atrás.
Daquele reizinho sem trono. Agora só. Dentro do seu carro, seguindo seu
caminho. Sereno. A musica ainda tocava. Caetano ainda dizia seus últimos
versos...
...Piensa que yo por ti estaré esperando,
Hasta que tu decidas
regressar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário