quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O dia do sim

Marco Aurélio atendeu o telefone e respondeu “sim”, enquanto seus dedos percorriam o fio encaracolado do aparelho. Pouco tempo depois, já com a conversa terminada, encontrava-se refestelado numa cadeira próximo à janela. De uma pequena fresta de cortina aberta ele observava a chuva que caia fina e insistente, lá detrás de uma montanha via o sol sumindo, deixando um ponto de luz no ar, como um botão, um pingo, um acento qualquer na rocha, na cidade. Acendeu um cigarro. Sim, ele fuma. A cada fração milimétrica que era consumida do objeto, mais próximo de si chegava a brasa, feito um cronômetro marcando a finitude de seus pensamentos.

Sim - disse ele ao telefone. E depois consumiu em cinzas o tal “sim”. Quantos “nãos” podem caber dentro de um simples sim?  Pouco importa. O sim já era sim, foi sim e continuava sim...

A campainha tocou: peeeen... Dona Lúcia, a vizinha de porta, esboçou um sorriso largo e sufocante, disposta a engolir o interlocutor, a porta, o andar, o prédio, o mundo. Seu chinelinho amarelo era o mesmo de sempre, desbotado e  mais gasto na parte interna, bem na região do dedão. Ela pisava com uma intensidade notavelmente desigual, que era impossível não olhar para o seu pé. Sempre assustava Marco Aurélio a força de seu dedão, invariavelmente pintado de vermelho, um vermelho assustado também, que parecia querer fugir daquela unha.

Dona Lúcia disse “sim”, com sua boca voluntariosa e seu dedão esmagador de chinelos. Quão sim, seria o sim de dona Lúcia, perguntou-se. Apenas um sim em contraste com um não. O sim de dona Lúcia era reto, alto e cheio de “sims”. Um sim abarcador, largo, cosmopolita, unânime. Não podia deixar de pensar no seu dedão... o "sim" de dona Lúcia era como o dedão de dona lúcia. Capaz de afugentar a mais remota e vermelha possibilidade de dúvida. Era, de fato, um sim com todo o potencial de sim. Era simsimsimsim... ecoava. Chegava a agredir o rapaz, de tão pontiagudo.

Instintivamente olhou para o seu pé, buscando seus dedos. Eram medianos e acomodavam-se discretamente no calçado. Neste momento, percebeu um movimento de leve fungar que tocava intermitentemente a extremidade inferior da porta. Aproximou-se e vislumbrou um pelo grosso e saliente que entrava e saia. Sem dúvida, era Cardosinho, o chihuahua da vizinha. O fiapo do bigode do cão fê-lo esquecer, momentaneamente, sobre o que pensava antes. Lembrou-se de suas tarefas e de tudo que deveria providenciar naquele dia. Aquele dia em que havia dito “sim”. Foi até a cozinha, tomou um copo d’água e despediu-se de dona Lúcia, do seu dedão, do seu chihuahua e  de sua certeza voraz.

Tocou o celular. Passados alguns minutos, Marco Aurélio respondeu “talvez”.


Apertou a tecla encerrar. Conteve um sorriso que insistia em saltar de sua boca e cobri-lo todo de uma gargalhada tão sua, tão nua e ao mesmo tempo tão agradável. Parou. Limitou-se a levantar os dois cantos da boca, dizer-se, mudamente, o mais sincero “sim” e vestir-se com sua nudez. Vestiu-se daquele “talvez” e nunca havia se sentido tão confortável na vida.